terça-feira, 4 de novembro de 2008

Presunção e água benta, cada qual toma a que quer


Ao Ricardo:

Começando pelo fim. É muita presunção tua achar que as ilegalidades, que as injustiças, só te afectam a ti. Aprecio o tom particular do teu post.
Por acaso, mas só por acaso, eu e a minha família já fomos vítimas de actos administrativos relativos a construções e demolições que além de injustos, foram altamente danosos para a nossa vida financeira (como é óbvio não irei entrar em pormenores aqui). Quem nunca o foi? Nos últimos 5 anos, semestralmente o meu pai tem que se deslocar a Lisboa para tratar de “um papel” que ninguém sabe onde está. Todos os anos, em determinada altura, a sobrevivência - saliento a gravidade da palavra sobrevivência - financeira dos meus pais é colocada em causa pelo juízo arbitrário de um funcionário público. Este processo existe há pelo menos 6 anos, e prolongar-se-á nos próximos muitos anos. Na minha situação está em causa, não tanto os tribunais, mas a burocracia e o autismo dos ministérios e secretarias que tomam decisões avulsas sem perguntarem a quem é afectado o que acham sobre o assunto.
Como eu, há de certeza milhares de pessoas que escrevem em blogues e falam em cafés e são afectadas diariamente por decisões erradas, ilegais ou injustas de tribunais, de governos, ou de funcionários públicos. Apesar disso, todas essas pessoas, eu incluído, tentamos manter um juízo critico sobre o que se passa à nossa volta, e não gritar Aqui del rei quando nos pisam os calos.
Portanto, não me venhas dar lições de moral sobre quão mau o estado é para ti.
Mas há aqui uma diferença fundamental. Eu, e muitas pessoas que escrevem em blogues e falam em cafés, não precisamos que nos afectem o quintal (nunca a expressão se adequou tanto) para nos indignarmos, para nos associarmos, para contestarmos, para termos uma postura crítica, para recorrermos aos tribunais para pugnarmos pelos nossos direitos. Já o fiz muitas vezes em quintais que não eram meus. Por acaso, em algumas dessas vezes o Estado de Direito funcionou e eu orgulhei-me de viver neste país. Felizmente há pessoas que, não sendo afectadas por nada em particular, perdem o seu tempo a lutar para mudar as coisas. Tomo-as como exemplo a seguir.
Disse e repito: Não tenho dúvidas absolutamente nenhumas que vivemos num estado de Direito. Só quem não percebe o conceito de estado de direito não entende o que isso significa. Um estado de direito pressupõe a existência de uma série de pressupostos políticos, de organismos públicos, estruturas político-administrativas, instituições legislativas, jurídicas e policiais, a existência de separação de poderes, etc, etc , que estão bem explicados em vários sítios da Web, não só na wikipédia.
Discutir se vivemos ou não num estado de direito é o mesmo que discutir se vivemos em democracia ou num estado capitalista. Eu não tenho dúvidas que vivemos nos três: Estado de direito, democrático e capitalista. Agora, discutir a condição de existência de cada um é, como já disse, outra história. Mesmo discutir a própria continuidade em termos de existência de cada um nos próximos anos é outra história. Actualmente vivemos num estado de Direito, democrático e capitalista. Estaríamos horas a discutir o (mau) estado de cada um.
Disse e repito: a existência ou não de algo, não deve ser somente avaliada pelo seu estado momentâneo.
Disse e repito: este estado de direito em que vivemos é frágil, tem inúmeras vulnerabilidades, vícios e defeitos, que fazem as populações duvidarem da sua própria existência. É absolutamente urgente resolver os problemas graves que minam o conceito de estado de direito, nomeadamente a Justiça. É fundamental resolver seriamente os problemas da Justiça em Portugal. Hoje! Admito até que o estado de Direito em que vivemos está de tal forma afectado por tantas ilegalidades impunes, por tantos abusos de poder que, repito, a sua existência seja posta em causa. Contudo, saliento a lógica :existência posta em causa, pressupõe existência prévia. Lógica.
Todas as pessoas que são afectadas diariamente por coisas tão diversas que vão desde decisões administrativas, a decisões jurídicas, do salário mínimo ridículo, a expropriações, à saúde, à educação, a tudo o que está mal neste país, todas essas pessoas tem direitos e deveres que decorrem de vivermos num Estado de Direito. Todas essas pessoas, eu incluído, se queixam. Todas essas pessoas, eu incluído, acham que a “coisa está preta”, que os poderosos são demasiado poderosos, que há abuso de autoridade, corrupção e uma escandalosa falta de sentido de estado por boa parte dos políticos. Em “todas essas pessoas” incluem-se todos os que foram vítimas injustas no processo CRIL, que tu tão bem tens vindo a relatar neste blogue. É vergonhoso, lamentável e execrável como todo o processo foi conduzido.
Felizmente existe o poder de livre associação, veja-se o excelente trabalho de cidadania da Comissão de Moradores de Santa Cruz de Benfica (entre outras), para protestar e nos informar destas situações; ainda bem que existe a liberdade de expressão, para podermos discutir as coisas neste blogue e nas mesas do café; felizmente existem tribunais nacionais e europeus para se garantir o cumprimento das leis, se bem que esses tribunais tenham falhas gravíssimas de funcionamento; felizmente existe comunicação social para divulgar estes e outros casos (o facto de primeiro se chamar a TVI do que o PGR, tem a ver que com o facto da TVI denunciar, não julgar, um acontecimento no jornal da noite do próprio dia, enquanto o PGR instaurar um processo a ser julgado em anos a vir, a as pessoas sabem-nos muito bem); felizmente existe vontade de trabalhar para mudar, e não só criticar, mesmo em ti, Ricardo, sei que existe essa vontade;por tudo isto e muito mais, felizmente vivemos num estado de direito!
Porque se não vivêssemos, tudo o que se passou no processo CRIL não interessava para nada. Nem sequer podíamos ou adiantava estarmos a ter esta discussão.
Todas as injustiças e ilegalidade que ocorrem todos os dias, por todo o país, incluindo o teu quintal, dão-me alento para lutar, para escrever em blogues, para falar em cafés, para me associar, para me filiar, para processar, para continuar a fazer o que faço há anos. Sabendo que pelo caminho, muitas vezes perderei a esperança, desiludir-me-ei, e rogarei pragas a alguns poderosos. Já me aconteceu, espero que continue a acontecer.
Neste caminho continuarei a crer que vivemos num estado de Direito imperfeito como todos os existentes, em que diariamente acontecem ilegalidades e injustiças, inclusive no meu quintal. Até lá, farei o que fiz nos últimos anos: além de escrever em blogues e falar em cafés, actuarei.




P.S.: Gosto muito de discutir o estado das coisas em Portugal. Quem me conhece, sabe-o. A criação deste blog é a prova disso. Mas custa-me perder tempo a discutir coisas que são, para mim e para a maior parte das pessoas, óbvias. E recusei-me a discutir o óbvio nos comentários do outro post porque, de facto, agora não tenho tempo para isso. Até ao fim do mês não deverei escrever nenhum post, só por falta de tempo, não de interesse. Claro que continuarei a ler e a comentar os textos que aqui forem surgindo. Saudações a todos os leitores e autores deste blog.